quinta-feira, 10 de março de 2011

A profundidade do silêncio

Vieram me falar que o poeta havia partido. Não acreditei. Tentaram me convencer: Passou na televisão... Liguei no seu celular e uma de suas sobrinhas me confirmou. O poeta nos deixara na sexta-feira à noite, 18/02, durante um sarau. Enquanto recitava, o coração desacelerou. E o manuscrito que segurava o seu último poema foi parar aos pés de uma declamadora. O sepultamento tinha acontecido às 16h de sábado. Senti sua falta. Sodré era um cara com disposição avoenga, que ao meio-dia, realizava concertos de flauta ou violão, independente de plateia. Como duende encantado ou encantador de cobras, sua canção emoliente trazia de longe a letargia. De mundos árabes, talvez. De sua Pasárgada.

Quando o conheci, Antônio se dedicava ao pontilhismo. Estava prestes a publicar Empório Literário e costumava dizer que a atividade artística servia como ocupação terapêutica. Explicava que a inspiração para o título do livro vinha do fato de, durante muitos anos, ter servido como ajudante no comércio dos pais. A paixão pelo rádio, companheiro viagens, também era antiga. Do tempo em que viveu na roça e percorria longas distâncias de ônibus: seu primeiro contato com a poesia. A respeito de Besta Poética, opúsculo publicado em 1984, pela IOMAT, Antônio me confidenciou um dia: “Trata-se de uma invenção (inversão) do Adir [Sodré, artista plástico, irmão do poeta], na hora de confeccionar a capa. Originalmente, o livro era pra se chamar Poética Besta.”


Seu sonho maior era abrir uma livraria perto da universidade. Um sonho, assim como ele, modesto. Pois um armário, um balcão com cadeado e uma pequena mesa de escritório (pertencente à UFMT) bastavam para compor o seu ateliê aberto à visita no saguão da universidade. Contudo, antes de se instalar naquele local, reza a lenda que Antônio percorria o campus como livreiro mascate. Contam que dispunha os seus livros usados sobre um comprido lençol estendido sobre a relva e por isso batizara o seu comércio itinerante com o mágico nome de tapete voador. Alegava que o mais importante era a leitura, não o estado de conservação de um livro. Sabia, enfim, mais do que qualquer outro livreiro, o valor de seu produto, visto que sua leitura não se restringia à lombada dos livros.


E, além disso, o diferencial: oferecia prazos elásticos como forma de pagamento (de um livro, muitas vezes, pego fiado). “Tem a vista e a perder de vista”, brincava. “Como vai querer?” O poeta era maior do que o comerciante.

Certa vez, encontrei o escritor Marinaldo Custódio no saguão da universidade esperando pelo Sodré. Tínhamos ido até lá saldar uma dívida e saudar o poeta. Que, certamente, nos salvaria com sua alucinada pantomima. Sempre que nos encontrávamos, seus olhos ciganos se agigantavam de um modo que deixava evidente, a um só tempo, contentamento e surpresa. Mas, naquela noite, ele não apareceu. Desolados, recordamos um epigrama sensorial do próprio Antônio que se adequava perfeitamente à situação. “Esperei você toda a tarde. A noite veio em seu lugar.” Sabíamos, entretanto, que a culpa fora completamente nossa, que resolvemos aparecer de surpresa. Sodré era homem de palavra. Da palavra viva, aliás. Vivia por ela, fiador de si mesmo. Poeta 24h. Mercador de ilusões. Acreditava que, mesmo num mundo capitalista e imediatista como o nosso, a poesia é produto de primeira necessidade. Por isso, levava poemas de extrema magnitude à periferia. Livreiro, poeta livre. Nenhum outro poeta mato-grossense divulgou tanto a própria obra quanto Antônio Sodré. Pregoeiro, esgotou a primeira edição de seu Empório em menos de um ano. Sodré tinha o lirismo do clown. Era performático e gostava de admirar a chuva. Declarava-se discípulo de Bashô, haicaísta japonês. E desprezava a eloquência em favor do humorismo que muito lhe era peculiar. Fora um casto mesmo quando erótico. E sabia exatamente a profundidade do silêncio.

Um dia Sodré me fez uma proposta. Queria que eu o ajudasse na banca de livros. “Enquanto fica aqui, você escreve”, argumentou. Fiquei alguns dias. Li, escrevi, mas, embora me esforçasse, quase não vendia. Faltava o seu carisma. Na hora de ir embora, ficava com remorso de pegar a remuneração. Sabia que o convívio diário com o poeta significava o meu estágio voluntário com a poesia.


Sentado junto à bancada, eu olhava através da vidraça o trânsito na Fernando Corrêa à procura de algum flagrante. Ver o Sodré caminhando ao longe, morosamente, ao longo da avenida, me dava a impressão de que, devagarinho, ele atravessaria o final do dia.

Voltei à UFMT esta semana. Seus poemas permaneciam em seu improvisado varal poético. Trêmulas bandeirolas ao vento, cada um deles me acenava. Duvido que alguém se disponha a trocá-los diariamente. Religiosamente, como fazia Sodré. Me disseram que a universidade pretende modificar aquele espaço. Que um dia foi chamado (en)canto poético. Não pude conter a emoção ao ver os objetos de uso do poeta espalhados sobre a bancada. Segundo me informaram, à espera de seus familiares que viriam ali para recolhê-los. Confesso, trouxe comigo um amuleto surrupiado: a caneca de madeira cheia de garatujas, na qual o poeta guardava inúmeros lápis e canetas. Secas, evidentemente, pois ele era meio desligado. Acredito que me trará sorte. E um pouco mais de inspiração. Assim deve ter pensado também a professora de Letras, que, me vendo cometer o delito, sorriu em cumplicidade. “A dor é líquida por quem os sinos não dobram mais”, escreveu um dia, em tom elegíaco, Antônio Sodré. Poeta-andarilho, natural de Rondonópolis, também conhecido como o poeta da transmutação.
 
Texto de Odair de Morais publicado no http://www.odairdemorais.blogspot.com/

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